A ignorância sobre o homem

A nossa ignorância pode ser atribuída ao género de existência dos nossos antepassados, à complexidade da nossa natureza e à estrutura do nosso espírito. Antes de mais, era necessário viver. E essa necessidade reclamava a conquista do mundo exterior.
Era imprescindível alimentar-se a gente, preservar-se do frio, combater os animais selvagens e os outros homens.
No decorrer de imensos períodos, os nossos avós não tiveram nem tempo, nem necessidade de se estudar a si próprios. Empregaram a inteligência no fabrico das armas e dos utensílios, na descoberta do fogo, na domesticação dos bois e dos cavalos, na invenção da roda, na cultura dos cereais…
Muito tempo antes de se interessarem pela constituição do corpo e do espírito, contemplaram o Sol, a Lua e as estrelas, as marés, a sucessão das estações. A astronomia achava-se já muito adiantada numa época em que a fisiologia era totalmente desconhecida. Galileu reduziu a Terra, centro do mundo, à categoria de humilde satélite do Sol, quando ainda não se possuía qualquer noção sobre a estrutura e as funções do cérebro, do fígado ou da glândula tiróide.
Como nas condições da vida natural, o organismo funciona satisfatoriamente sem necessidade de cuidados que qualquer espécie, a ciência desenvolveu-se na direcção em que a curiosidade do homem a impelia; para o mundo exterior.
De tempos a tempos, de entre os biliões de indivíduos que se sucederam sobre a Terra, alguns nasceram dotados de poderes maravilhosos e raros – a intuição das coisas desconhecidas, a imaginação criadora de novos mundos e a faculdade de descobrir as relações ocultas que existem entre os fenómenos.
Estes homens exploravam o universo físico, cuja constituição é simples. Por isso cedeu rapidamente ao ataque dos sábios e deixou desvendar algumas das suas leis.
E o conhecimento dessas leis deu-nos o poder de explorar a matéria em nosso proveito. As aplicações práticas das descobertas científicas são, ao mesmo tempo, lucrativas para aqueles que as desenvolvem e agradáveis ao público, cuja existência facilitam e cujo conforto aumentam.
Naturalmente, todos se interessam muito mais pelas invenções que tornam o trabalho menos penoso, aceleram a rapidez das comunicações e diminuem a dureza da vida, do que pelas descobertas que traziam alguma luz sobre os tão difíceis problemas da constituição do nosso corpo e da nossa consciência.
A conquista do mundo material, para a qual tendem constantemente a atenção e a vontade dos homens, fez esquecer quase completamente a existência do mundo orgânico e espiritual. O conhecimento do meio cósmico era indispensável, mas o da nossa própria natureza mostrava-se de utilidade muito menos instante. Contudo, a dor, a morte, as aspirações mais ou menos vagas dum poder oculto e dominador do universo visível, atraíram, frouxamente, as atenções do homem sobre o mundo interior do seu corpo e do seu espírito A medicina não se ocupou a princípio senão do problema prático de aliviar os doentes por meio de receitas empíricas. Só numa época recente compreendeu que, para evitar ou curar as doenças, o meio mais seguro é conhecer o corpo normal e o corpo doente, isto é, construir as ciências a que damos os nomes de anatomia, química biológica, fisiologia e patologia.
Não obstante, o mistério da nossa existência, o sofrimento moral e os fenómenos metafísicos pareceram aos nossos antepassados mais importantes do que a dor física e as doenças. O estudo da vida espiritual e da filosofia atraiu homens mais eminentes do que a medicina. As leis da mística foram conhecidas antes das da fisiologia. Mas, umas e outras não viram a luz senão quando a espécie humana teve o vagar suficiente para desviar um pouco a sua atenção da conquista do mundo exterior.